quarta-feira, 20 de outubro de 2010

PETIT MONDE GOURMET


Esta é mais uma da minha irmã, a bisavó era a mesma...

Inaê Magno*

Almoçava com um velho amigo enquanto o ouvia listar as maravilhas da moderna gastronomia: crème brûlée, petit gateu, camarões chineses, carnes argentinas, cortes especiais, frisantes, espumantes, outros vinhos, cafés. Coisas de encher os olhos, a pança, a alma.
Há certa altura, pensando com meus murchos botões, arrisquei palpite: “Não sou chique! Não gosto de sushi, não bebo café, vinho também não”. Ele, de lá, disse que eu estava errada, que gosto é gosto e pronto. Não existe isso de gosto chique ou não:
- Mas se a pessoa gosta de arroz com feijão, também não precisa comentar, né? Concluiu seu raciocínio.
Hein? Por que, não? Qual o problema de gostar de arroz com feijão? Perguntei deveras convicta de minha inaptidão para o glamour.
- Não tem problema nenhum. Só que arroz com feijão é coisa comum, não é para dizer que gosta.
Comum para nós, porque é da nossa cultura. Um estrangeiro bem pode se deleitar com um feijãozinho com carne e arroz.
- Isso mesmo, é nossa cultura, não tem que falar que gosta.
Naquela hora, eu que muito me esforçava por flanar pelos sabores requintados que o homenzinho à minha frente descrevia, vi-me, de súbito, à mesa de minha bisavó. Meu bisavô à cabeceira, ela à sua esquerda, pouco depois tia Nena. O lustre de madeira trabalhada sobre nós, toalha limpa, pratos de porcelana branca e bordas cor de prata, talheres antigos, copos de vidro. A cestinha de pão e o meio limão ao lado de vovô. E um carinho de brisa fresca soprando das janelas abertas.
Vovó era italiana, de Pescia, Toscana. Jovem camponesa que desceu aos trópicos em busca de vida melhor. Trabalhou de roça, de operária. Partiu aos noventa, viúva de um pequeno industrial húngaro, oito anos mais velho. Mãe de duas filhas. Avó, bisavó.
Vovó era cozinheira. Não, minto. Vovó era COZINHEIRA. Sim. Maiúscula. Na cozinha e em tudo mais. Em sua casa, aquela que a abrigou até a morte e que em vida acolheu a todos, havia muitas dessas coisas de que falava meu amigo: vinhos, cafés, comidas. Mas era diferente. Vinho era domingo, companhia de macarronada com queijo ralado. O aroma onipresente da mesa posta não dava espaço a que se cheirasse o copo antes de bebê-lo. Café se tomava de manhã, depois do almoço e à tarde. Era coado na hora, deixava um rastro de coisa boa no ar. Não era amigo de água com gás e pau de canela. Sua parceria era com bolo de ovos, pão de mel, baralho, conversa fiada. E comida era isso mesmo: comida. Quer dizer: COMIDA. Farta, simples, boa.
Nos bons tempos de minha infância, bem aquecida pelas asas de vovó, nossa família era relativamente extensa. Havia tios e primos de graus variados. Gente nacional, gente estrangeira, gente nova, gente velha. Quando vovó anunciava comida – almoço, jantar, o que fosse – a casa enchia e ninguém lamentava não haver chef na cozinha. O povaréu ia porque era domingo, porque era Natal, porque era noite e chovia. Por causa do espaguete, do bolo de nozes, do caldo de carne com cabelinho de anjo. Ia para ver vovô. Ia para ver vovó. Ia porque ia. E deixou de ir quando eles morreram.
Vovó, italianíssima, não parecia ter vergonha de dizer que gostava de macarrão. E nós, brasileiríssimos comensais de sua obra prima, menos ainda. Também não nos envergonhávamos de gostar de ovo frito, peixe à milanesa, chuchu refogado na manteiga, frango ensopado com mandioquinha e cenoura.
Tenho saudades de minha bisavó. Muitas. Mulher fascinante. Boa e simples como arroz com feijão, bife com batata frita, macarrão com molho. Seu endereço, meu primeiro lar: Rua Dona Antônia de Queiroz, 165. O antigo sobrado ainda está lá. Hoje abriga qualquer coisa da Prefeitura. Está de pé, mas não vivo. Não brilha à luz da prata e dos cristais. Domingos, para ele, são apenas os dias mumificados que se espremem entre sábados e segundas. Não mais o cheiro do tomate fresco, o som das cortinas ao vento. As noites, quando há frio, são noites de frio. Não mais sopa quentinha, torradas, vontade de cobertor. Aos sábados não há ervilhas, carteado, café fresco. A velha casa está lá. Vovó não.
Vejo-me imersa em devaneios. Quem atenderá quando eu chamar o 256-3653? Onde estão os gerânios da sacada? Não vejo vovô ao sofá. Alguém dê quirela aos pobres pardais, pelo amor de Deus! As janelas da frente não podem estar fechadas, hoje é dia de sol! Não é vovó quem desce as escadas, batom vermelho, garbo absoluto. Tia, e sua porcelana? Não se pinta mais nesta casa? Quem cortou o jasmineiro do quintal? O pinheiro há muito que caiu, lembro. E vovô, ao longe, repete seu bordão: “Quanta coisa acontece quando o dia é comprido!”.
Não posso mudar o que passou. Fecho os olhos na infância e os reabro agora, adulta. De volta à mesa de meu amigo. Ele ainda fala de baristas, sommeliers e outros estetas do gosto. Moderna gastronomia, coisa chique. Não lhe quero estragar o entusiasmo, mas esse pessoal já estava por aqui quando vovó fazia polenta com carne moída. Eles agora são mais. As avós, menos.
Não temamos, o sonho não acabou. Quando esse petit monde gourmet invadir a cozinha dos lares e o coq au vin for nosso franguinho de domingo, ainda haverá o céu das avós, imenso e generoso refúgio onde mulheres maiúsculas como Dona Ernesta cozinharão seus quitutes para nós, eternos, saudosos e famintos netinhos.

Brasília, 10 de setembro de 2010.

* socióloga, bisneta da D. Ernesta e irmã da Adriana.

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