quarta-feira, 13 de março de 2019

tecendo memórias

Para Seu Antônio,
A manufatura de Tapetes Sta. Helena era a fábrica de tapetes artesanais do meu bisavô, seu Antonio Friedmann. Seu Antônio, como era conhecido.  Nasceu em 01 de Setembro de 1892 na região da Transilvânia que fazia parte da Hungria e atualmente pertence ao território da Romênia.
Filho de um açougueiro, meu bisavó teve uma longa jornada de vida. Aos 16 anos aprendeu a fazer tapetes artesanais, aos 22 lutava ao lado do exército austro húngaro na 1 Guerra mundial. 1914 foi capturado pelo exército russo e enviado para um campo de concentração de prisioneiros na Sibéria onde permaneceu preso até 1917, quando o então exército vermelho propôs aos prisioneiros a liberdade em troca da luta pela revolução socialista. Meu avô chegou a ser capitão do exército vermelho e conheceu figuras históricas como Lenin, Stalin e Trotsky, depois de vencida a revolução, voltou para a terra natal e em 1923 já estava no Brasil e junto com outros familiares, em Agosto de 1923 fundou a fábrica de Tapetes. Teve 2 casamentos, 1 filha legítima e 2 enteadas, 5 netos e 11 ou 12 bisnetos (não sei precisar). Nunca mais, depois da sua chegada, deixou o Brasil, morreu naturalizado, e tinha pelo Brasil, país que ele adotou, carinho e apreço.
Era um homem doce, essa é a melhor definição que minha memória tem daquele simpático velhinho de sotaque estranho, meio germânico, meio macarrônico e do qual eu tive o privilégio de conviver até meus 18 anos quando ele faleceu de velhice aos 97 anos.
Foram muitos anos gestando um texto sobre ele, ainda é muito difícil escrever sem que as lágrimas atrapalhem a concentração e a escrita. Esse é o relato de uma bisneta, muito apaixonada pelo bisavô e que guardou na memória uma figura icônica e é sobre ela que eu quero falar.
Seu Antônio tinha cheiro de vaselina, que ele caprichosamente aplicava todas as manhãs no cabelo. Sempre, sem exceção andava de terno e colete, quando em casa, para refrescar nos dias de calor, ficava apenas de camisa social de mangas compridas, nunca o vi de mangas curtas. Era brincalhão, tinha um sorriso afetuoso e gostava de crianças, bichos e plantas, aliás dizia para nós sempre termos um pé atrás com pessoas que não gostassem nem de crianças,  nem de bichos e nem de plantas, por precaução, gosto dos três.
Era orquidófilo, inclusive com orquídeas premiadas em concursos, alimentava os pássaros todas as manhãs, quirela para os pardais, milho para os pombos (faço isso em casa, alimento os pássaros). Lia os jornais aos domingos religiosamente sentado no sofá da sala de visitas ao lado da janela. Era socialista e ateu, apesar de ter nascido em família judaica. Sabia dar injeção - habilidade estranha para um bisavô simpático - havia aprendido no exército. Adorava uma cachacinha, tomava sempre uma dose antes do almoço e outra antes do jantar; fazia um licor de laranjinhas que era famoso e ficava muito impaciente quando o almoço demorava para sair nos finais de semana quando a casa, em geral, enchia-se de filhos, enteados, netos e bisnetos. Gostava de jogar buraco, aliás levava a sério o jogo, até brigava por causa dele aquele meigo senhor que no final da vida andava de bengalas.
Era tudo aquilo que um avô deve ser, paciente, meigo e acolhedor e com todas essas características maravilhosas era meu bisavô por afinidade e não por sangue.
Quando veio para o Brasil casou-se com uma conterrânea, aqueles casamentos arranjados e contratados pelos familiares muito comuns no início do século XX, reza a lenda que os noivos não tinham afinidades e em pouco tempo o casamento já não existia. Era um homem desquitado e com uma filha desta primeira união, minha tia Madalena, que já é falecida. Era um marido atencioso, lembrava-se de datas importantes (mulheres em geral gostam de datas), nunca saia de casa sem dar um beijo e acordar minha bisavó, que nunca levantava com ele as 5:30 da matina. Dava flores, no aniversário, dias das mães e em todas essas datas comemorativas.
Minha bisavó, D, Ernesta (que merece um texto só dela e que vai ganhar um dia) foi sua segunda e definitiva esposa, vovó tinha duas filhas de duas outras uniões anteriores, minha avó era uma delas. Assim esse bisavô pelo laço mais definitivo que existe na família, o amor, foi o único que conheci e amei e para falar a verdade, nunca fez diferença ele ser um parente distante e não um parente de sangue direto - ele era primo irmão do meu bisavô de sangue - ele foi meu avô Antônio um porto seguro, um amparo de carinho e afeição, mesmo agora tantos anos depois de sua morte é isso que ele representa, o amor incondicional dos laços familiares.
Recebi recentemente um presente, um vídeo feito pelo documentarista Vitor Hugo Martins e pela psicanalista Silvia Bigareli sobre a fabrica de tapetes Santa Helena e o trabalho do meu bisavô. Fiquei feliz em ver resgatado  a arte de tecer tapetes em estilo oriental  por ele desenvolvida, mas fique mais feliz ainda por saber que não só em mim, sua bisneta, sua lembrança é viva. Mas que antigos funcionários guardam lembranças queridas e doces do seu Antônio da fábrica. Talvez os funcionários nunca tenha sabido disto, mas meu bisavô não gostava de despedir ninguém, socialista no coração, tinha dó de dispensar um funcionário, pensava sempre nas consequências desastrosa que isso podia acarretar, talvez por isso, porque era um artesão humanista nunca tenha enricado, a fábrica durou sua existência, sempre entre trancos e barrancos no que me lembro e menos de 3 anos depois de sua morte a Santa Helena encerrou definitivamente suas atividades; seus herdeiros, nós, não conseguimos tocar o seu legado, infelizmente as dívidas eram muitas e os interesses eram outros.
Uma vez escrevi numa crônica, aqui publicada, que eu nunca esqueci como tecer um tapete, é verdade, eu continuo tecendo tapetes na memória em homenagem a este bisavô que enche meu peito de orgulho e de muitas saudades!

Deixo o link do projeto Santa Helena, tecendo memórias para os interessados: https://www.santahelenadoc.com/?fbclid=IwAR0X6ZpPiLOc2PcVQiXq0YymN_T62Nfgv7g40DZC9Xnc78VIpGZakL30RxM

Legenda das fotos abaixo: 1- registro da cruz vermelha que meu bisavô era um prisioneiro de guerra na 1 guerra mundial; 2- Ele e minha bisavó juntos; 3- Meu bisavô jovem na época em que chegou no Brasil; 4- Fábrica de Tapetes Santa Helena em Jacareí; 5- Festa de aniversário de seus 89 anos rodeado pelos bisnetos.