sexta-feira, 12 de junho de 2009

O ENCONTRO

I

Ágata ouviu um grito. Andou depressa virou a esquina, entrou no beco mal iluminado, largou o carrinho de sopa que puxava e avançou com maior velocidade em direção ao grito, agora mais fraco, abafado, quase um murmúrio. Aproximando-se da cena parou estarrecida, não podia acreditar no que via, por um curto momento achou que estava tendo alucinações. Recobrou os sentidos e a plenos pulmões berrou:

- Pare! Pare agora. Você o está matando!

Abel há dias andava inquieto sentido que suas forças podiam abandoná-lo a qualquer momento, sabia o que devia fazer, relutava, era sempre muito difícil cumprir o ritual até o fim. Desde criança um misto de repulsa e prazer o invadiam na execução das vítimas, era como se a dor e o sofrimento causado pudessem penetrar seu corpo e alma aprisionando-o, sufocando-o. Teria que executá-lo mais uma vez. Saiu já tarde da noite, era mais fácil encontrar alguém para matar no final da madrugada, próximo ao alvorecer. Poderia correr riscos se no intervalo de tempo entre encontrar a pessoa certa e executar todo processo houvesse demora. Teve sorte, a poucos metros de sua morada, num beco sem saída, ouviu os lamurio de um bêbado, provavelmente um indigente. Aproximou-se, não encontrou resistência, respondeu com um aceno de cabeça as palavras mal pronunciadas do homem, usou seu magnetismo para imobilizá-lo e começou a sugar seu sangue, sempre preferiu a jugular as vísceras, a repugnância desta última o impelia. Quando já estava terminando a execução, sentindo a pulsação do bêbado se esvair, ouviu um grito forte, impositivo que o assustou e o fez se distanciar de sua vítima.
Atônito olhava frenética e simultaneamente para o homem agonizante no chão e a mulher impávida e ofegante a sua frente, hesitante parou e ouviu o que ela dizia.

- Que criatura vil é você, como pode? Ele está morrendo, seu monstro!

Com a fisionomia transformada, voz animalesca e olhos vermelhos sangue, respondeu:

- Não vê que você ao me interromper o está fazendo sofrer mais? Tenha piedade, deixe-me terminar o que comecei essa pobre criatura precisa da morte para descansar a alma.

Ágata deteve-se, olhou para o homem agonizante no chão a sua frente e para criatura monstruosa que implorava para dar, com a morte, o descanso merecido ao indigente moribundo, sem saber direito o que fazer consentiu, com a cabeça, o término da execução. Ficou observando a cena a poucos passos de distância, o monstro introduziu rapidamente seus caninos na jugular do homem, em poucos segundos o corpo daquela pobre criatura desfalecia nos braços de seu algoz. Manteve por um instante o homem falecido junto de si como que tecendo uma prece pelo ser que acabava de tirar a vida. Com calma e delicadeza colocou o corpo no chão, fechou os olhos do morto e levantou-se.
Encarou Ágata não ia falar com ela, ia embora, queria findar com o pesadelo daquela situação. Levantou-se e precipitou a andar em direção ao início do beco. Ao passar pela misteriosa mulher que presenciou a cena foi pego pelo braço que começou a arder forte com toque. Teve certeza que aquela não era uma mulher humana, os humanos não tinham força física, nem habilidades que pudessem deter vampiros, os humanos precisavam de artifícios bélicos e religiosos para capturar e executar sua raça. Preso encarou a criatura que o prendia.
Ágata puxou para junto de si o assassino e começou a acariciar lenta e delicadamente sua face que era um misto de feições humanas com as dos animais hematófagos, os morcegos. Ela estava fascinada e perplexa, como aquele ser demoníaco podia conter sentimentos tão nobres e puros como compaixão e piedade? Seus dedos sentiam toda a textura da feiúra e da rudeza de sua pele, numa atração incontrolável passava cada vez mais a mão pelo rosto da criatura.
Abel surpreso com a situação foi perdendo lentamente sua incorporação animal transfigurando-se em homem. Quem era aquela mulher? Seu braço ardia com seu toque, à maciez de seus dedos em sua pele era, ao contrário, morna, terna, confortante. Falou:

- Preciso ir embora (havia agora normalidade em sua voz) vai amanhecer em breve,não posso ficar exposto aos raios de sol.
- Para onde vai? Mora aqui por perto? Vou com você.
- Moro a poucos metros daqui. Levo você comigo, solte meu braço você está me machucando.

Ágata soltou o braço do vampiro, caminhou ao seu lado. Parou enfrente ao carrinho de sopa e disse:

- É meu, preciso levar.
- Eu ajudo. Vamos.

Andando lado a lado sem falar, apenas trocando olhares, sumiram na escuridão da noite.
II
O vampiro morava em um prédio velho, de poucos andares, sem elevador e com escadas sinuosas e estreitas. Abel ofereceu para subir o carrinho, serviço que fez com agilidade e rapidez. Chegaram sem demora no último andar, quatro portas dando para um pequeno e fétido hall. Abel abriu à porta nº31, a entrada dava direto para uma apertada cozinha, uma pia, um pequeno fogão, nenhuma geladeira, um velho armário de parede e uma mesa de dois lugares preenchiam o cômodo escuro e mal ventilado, mais a frente, interligada a cozinha, uma pequena sala, nela um sofá ao centro, um empoeirado tapete e uma janela fechada sem cortinas, duas portas uma na parede perpendicular a cozinha e outra próxima a parede da cozinha, compunham o cenário do bizarro lugar.

- Estou com fome, disse Ágata ao entrar.
- Não tenho comida para oferecer.
- Você não come?
- Acabei de me alimentar se você não percebeu! Você come igual aos humanos?
- Por que acha que não sou humana?
- Sei quando algo ou alguém é ou não da espécie humana. Sobrevivo do sangue humano, lembra?
- Você tem prato? Talher? Pode me arranjar um copo de água? Tenho sopa ainda no meu carrinho.

Abel arranjou uma tigela e uma colher, pegou um copo de água da torneira e ofereceu um canto na pequena mesa para ...

- Como é mesmo seu nome?
-Ágata, e você?
- Abel.

Enquanto Ágata comia calmamente a sopa, Abel observava atento e intrigado. A pela da misteriosa mulher era branca, muito clara, num tom rosado bonito, seus cabelos e olhos negros contrastavam com a brancura de sua tez, a silhueta bem torneada em curvas era mais roliça que a magreza comum das mulheres modernas, sua beleza tinham um toque renascentista, pouco apreciado nos dias atuais. Na penumbra de seu apartamento podia observar certo brilho azulado, discreto que moldurava sua figura. Seria possível que ele estivesse diante de um dos seres mais raros que existia? Anjos encarnados, criaturas divinas que escolheram nascer homem, viver entre eles e ajudá-los a amenizar suas penúrias e mazelas carregando dentro de si elementos divinos como amor, tolerância, paz e compaixão. Começou a alisar suavemente a pele macia e quente do braço de Ágata, um suave perfume floral exalava daquela criatura aquém podia amar incondicionalmente se este fosse o desejo dela. Por um momento deteve seus pensamentos na lembrança das várias amantes que teve ao longo da sua infinita e penosa existência, sempre desejou uma companheira, as mulheres que amou acabaram todas, com passar dos anos, mortas em seus braços.
Ágata acabou de comer, levantou-se, dirigiu-se para a pequena sala que estava iluminada apenas pela fraca luz que vinha da cozinha, quando ia sentar sentiu seu braço ser puxado para trás, ficou frente a frente com o vampiro que num tom imperativo ordenou:

- Mostre-me as asas!

Com um passo para trás livrando-se das mãos de Abel, Ágata começou a desabotoar a blusa que vestia sem deixar, por nenhum minuto, de encarar os olhos do vampiro a sua frente. Despida da cintura para cima balançou os ombros num discreto movimento e, um belo, branco e emplumado par de asas apareceram em suas costas. Sua respiração começava a ficar ofegante, um rubor desconcertante preencheu sua face, ela permaneceu imóvel, ignorando os claros sinais de timidez que seu corpo pronunciava.
Abel deu um passo em direção ao anjo passou as mãos suavemente pelas longas asas, nunca na vida sentira ou vira algo mais suave e sublime. Envolveu suas mãos na cintura da moça, puxou-a para junto de si e beijou-a. A boca úmida e lânguida da parceira provocou-lhe uma excitação incontrolável, afastou-a depois do beijo temendo que os impulsos de seu corpo a assustassem.

- Dentes. Ordenou Ágata.

O vampiro enfureceu procurando no fundo de seu ser a monstruosidade que nele habitava, uma dor o fez estremecer e em segundos a fisionomia animalesca, os olhos rubros, os caninos avantajados e pontiagudos apareceram, trocou os caracteres do belo jovem caucasiano de cabelos loiros cacheados e olhos azuis profundos, pela feição bestificada de vampiro.
Ágata aproximou-se e começou a passar novamente os dedos em sua face, desta vez eram as pontas dos dedos em seus caninos, não mais se esforçava para disfarçar a exaltação de sua respiração, nem o rubor de suas faces, algo naquele ser angelical ia lhe abandonando aos poucos. Quando percebeu o membro excitado do parceiro desceu agilmente suas pequenas mãos até a calça e começou abrir sem pudor, nem medo, suas vestes. Os jovens tomados pela volúpia do desejo iam despindo suas roupas o mais breve que conseguiam, logo estavam os dois nus olhando um para o outro.

- Que pele branca, pura, sem marcas você tem!

O anjo olhou o parceiro de cima a baixo. Era alto, de proporções grandes, pele num tom branco amarelado, sem vida.

- O que são estas tatuagens que cobrem quase todo o seu peito?
- Minha genealogia, vampiros não possuem registros de nascimento ou ancestralidade carregam consigo sua história, se eu morrer, ela desaparece comigo. É como se eu nunca tivesse existido.
- Gosto de sua voz nesse tom grave e distorcido, percebo nela uma melancolia e uma dor que estremece a alma. Queria sentir seus dentes em minha pele!

Abel sabia ser esta uma atitude suicida, se ele a mordesse morreria envenenado pela pureza de seu ser e ela, sangraria até a morte sufocada pela maldade presente em suas entranhas e sem ninguém por perto para lhe ministrar uma porção curativa. Um sorriso curto estampou seu rosto, pela primeira vez estava diante de uma mulher a quem temia e desejava; ela era em si o paradoxo de todo a sua desgraçada existência.

- Sabe ser este um pedido impossível, não sabe?
- Sei, nestes anos entre os mortais, nunca encontrei ninguém que aflorasse meus desejos carnais, só você foi capaz de fazê-lo, esta sua animalidade me deixa desconcertada.

A besta tomou o anjo em seus braços, beijou seus lábios, deitou-se por cima de seu corpo, afastou suas pernas e a penetrou, os corpos num balé sincronizado de movimentos rápidos e repetitivos iam alcançar o êxtase, quando Abel suspendeu seu tronco, puxou o corpo de Ágata pra cima posicionando-a sentada em seu falo; retomaram o frenesi dos corpos e em poucos segundos, num uníssono ato estarreceram no prazer do orgasmo. Ela com as asas abertas, erguidas para o vôo. Ele com os caninos rentes ao pescoço estendido do anjo. Não existiam mais forças, o amanhecer começava a romper no horizonte, Abel trouxe Ágata para junto de si, apagou a vela acesa na cozinha com um piscar de olhos e cobriu seus corpos nus com um velho cobertor que estava dobrado no sofá. Adormeceram.

III
Ágata já não era mais vista com freqüência na vizinhança, raramente saía de dia e, em muitas noites, não perambulava pelas ruas empurrando seu carrinho de sopa que oferecia aos pobres e carentes. Quando saía estava sempre acompanhada de um homem tacitúrnico, calado, vestido de negro. Ela continuava amável, sorridente distribuindo conforto e aconchego aos desvalidos, só aproximando-se melhor é que era possível perceber em seus lábios, no canto, uma gota de maldade. Esta sutil expressão lembrava uma nota baixa, quase inaudível no meio de uma estrondosa sinfonia.
Abel era o único que entendia a presença daquela maldade, sempre que se aproximava de um moribundo para lhe oferecer um ungüento para males e dores sentia o olhar de Ágata como o cravejar de uma faca em suas costas. Nas noites em que era preciso recorrer ao sacrifício humano para alimentar-se, Ágata o acompanhava e ficava sempre perto observando o ritual, ao término quando a criatura da noite exaurida pelo ato queria afastar-se o mais urgente do local, ela o segurava junto de si, passava os dedos e a língua entre seus dentes ensangüentados, ele imobilizado satisfazia os caprichos da amante. Iam apressadamente para casa, arrematando a noite com sexo.
Na eternidade de suas vidas os anos arrastaram-se lentamente...

quinta-feira, 7 de maio de 2009

CARTA A UM POETA

Nesta tarde chuvosa e atarefada deixo os corriqueiros afazeres de lado para lhe escrever. Pela manhã dedilhando seus livros, relendo dedicatórias, poemas prediletos e apreciando novos versos emocionei-me muito.
Nunca falei o quão familiar são seus escritos. Reconheço-me neles, não por serem a mim dedicados, é que compartilho contigo o universo de algumas de suas inspirações. Existe uma franqueza explícita nas palavras contidas que cruzam com meu cotidiano de aulas, trânsito, supermercado, casamento, filhos...
Sou o vampiro da pontifícia, me suicido com a faquinha do rocambole e grito: TIMAÔ EO! no Pacaembu. Procuro no frenesi dos beijos e dos corpos frêmulos o amor. Olho para o sol e fico esperando ele abrir seus olhos, sinto no peito um aperto de saudades variadas, de pessoas desacontecidas, lugares esquecidos, momentos revividos.
No dia a dia sou um flauner. Da janela do meu carro, no interminável transito paulistano, observo o burburinho dos acontecimentos e deliro em nomes, lugares, situações, sou um maestro enlouquecido regendo a multidão. Sou sapiens demens demens e compreendo que Antes do Medo havia o Susto do Speins.

Adriana
Maio de 2009.

domingo, 22 de março de 2009

O amor

O amor calou o peito num profundo silêncio estarrecedor.
Deitou como um amante impertinente e nunca mais se levantou...
Devagar e inconstante brota, ressurge incoviniente de tempos em tempos.

Sua ausência proclama o tempo da solidão, sua permanência vivência a perturbadora convivência de emoções.

Nunca mais só, nunca mais eu mesma
Agora sempre sou mais de um ser simultaneamente
Na complexidade da vida nasce à estranha instabilidade do amor!