sábado, 30 de março de 2013

A morte do rei nu.


Esta crônica da Inaê Magno fala-nos de uma velha história, atualizada pelos anos de comodismo que nos acostumamos a viver. Boa leitura!

Vem o rei pelo caminho. Coberto de ouros, claro. Manto, coroa, cetro. Vê-se-lhe pouco mais que os olhos.

- Cansados.

- É da viagem.

Avança lento entre os populares. Histriônicos adoradores gritam-lhe elogios:

- Fantástico! Absoluto!

Atrasado, um parente tenta alcançá-lo. Corre. Ziguezagueia. Dribla um e outro. Há muita gente no caminho. O monarca sempre um passo à frente. Estende o braço. Toca-lhe o manto. Perde-o. Espreme-se entre o populacho. Faz cara de asco. Estica-se um pouco mais. Alcança-lhe novamente as vestes. Puxa-as entre os dedos. Chama-o:

- Senhor, Senhor!

O rei faz cara de mouco.

Muito cansado, atordoado, já em desespero, o pobre parente olvida o protocolo e berra com despudorada intimidade, a roupa do soberano agora em suas mãos:

- Coronel! Estou aqui. Olhe para mim!

O povo pára. Entreolha-se. Alguém aponta:

- O rei está nu!!!

A multidão galhofa. Puro escárnio:

- Como é pequeno!

O séquito corre a remendar:

- Esplêndido!

- O rei é ainda mais belo nu!!!

- Lindo! Lindo! Ovaciona-se do mundaréu.

A essa altura já não se vê sua majestade. A corte formara imenso muro contra o povo. Apenas vozes. Elogios:

- Maravilhoso! Divino!

O monarca até pensa em cobrir as partes, diminuído. Mas há muito com o que ocupar as mãos. O poder é grande e pesa. E pensando bem, a transgressão o diverte. Lembra-lhe os velhos tempos. Segue então peladão, todo prosa.

Lá do céu, um tanto enciumado, entre bolachas de goma e a velha escarradeira, Deus condena do colega a soberba:

- Curva-te, pagão. Beija minha mão.

E lança um raio de cem mil watts sobre o ventre do coitado.

O homem enverga. Desmedida é a dor. Só que é de lei. Torar que é bom, nada. O nariz só aponta para o norte, tem jeito não.

Alguém nota-lhe o sofrimento:

- O rei está doente!

De pronto, a ladainha:

- Pai nosso que estás no céu, santificado seja o Vosso nome, proteja nosso Senhor da dor, da morte, da desgraça...

Ouvindo aquilo, Deus se enfurece. Quem esse reizinho pensa que é? Esnobe. Impudico. Infiel. E tome-lhe praga. Vamos ver se quem dobra não quebra?

- Pecador, eu te condeno. Venha a mim. Precisamos conversar.

O rei nu, coronel de exército nenhum, vê-se então explodir em chagas.  Imundo, borbulhante, purulento.

Uma criança que se embrenhara entre as gigantescas pernas da nobreza, exclama:

- Eca!!! O rei está podre. Que nojo! Vai morrer!

- Ai, meu Deus, grita a beata, nosso rei vai morrer? Valha-me nosso Senhor Jesus Cristo. Amém!!

Ao ouvir a blasfêmia, o parente que o desnudara enraivece-se:

- Ô gente burra! Odeio esse povo! Não diga “amém”, sua jumenta! Latim em boca de pobre, pérola em chiqueiro...

- Cala a boca, excomungado!

- A culpa é toda sua, Judas! O rei era magnífico enquanto vestido.

- Não bastasse o cancro no bucho, agora isso de apodrecer. É a ira do Pai. Só pode ser.

- Não pragueja, herege! Se foi o próprio Deus quem nos deu sua majestade...

- A natureza não tem escrúpulos morais, pessoal...

- Ateu, desgraçado!

- Nosso rei vai morrer! Nosso rei vai morrer!

E dá-lhe reza:

- Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, salva nosso Pai da dor, da morte, da desgraça...

Sonhando-se imortal, mas conhecendo bem o rio que corre entre o sono e o sonho, o absoluto, ainda curvado pela estúpida dor, olha-se enfim. Vê-se tomado de lepra. Os pés caminhando sobre o charco de sua própria imundície. Absurdo. Pavoroso. Carniça ambulante.

O menininho que lhe notara o horror, agora chora, levando consigo uma legião de inconsoláveis devotos a sofrer-lhe antecipadamente a perda.

E a beataria segura na reza:

- Creio em Deus-Pai, Todo Poderoso, criador do céu e da terra, defende nosso Salvador da dor, da morte, da desgraça...

Da multidão, uma voz proverbial:

- Vai-se o homem, fica o mártir!

Ah, não. O rei acha aquilo demais. Mártir?! Pera lá. Isso de morrer não está em seus planos!

Ele, que passara a infância de missa em missa, padre em padre, bem sabe que Deus gosta é de elogio (bom entendedor que é dos assuntos da vaidade). Dá então os dedos para ver salvo os anéis. Lança-se de joelhos no asfalto quente, ergue as mãos altíssimas aos céus, cerra os olhos para fingir-se embargado e grita... Não, não grita. Não lhe cairia bem. Apenas fala. Baixo. Bem baixinho mesmo. Cochicha aos ouvidos do Patrão:

- Piedade, Senhor. Piedade!

E cai. Já sem vida (Deus não estava mesmo para brincadeira!). Asfalto quente. Povão. Reza. E mais reza.

A jagunçada corre sobre o cadáver. Saca-o rapidamente de lá.

Alguém pensa em perguntar se o rei morrera. Teme. Desiste. Era audível o rosnar dos cães.

A multidão se dispersa. Tudo volta ao normal.

Dias depois, a notícia:

- O rei está morto!

(Mas morreu em leito de ouro, não custa lembrar).

 Inaê Magno.


Brasília, 28 de março de 2013.

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