Esta crônica da Inaê Magno fala-nos de uma velha história, atualizada pelos anos de comodismo que nos acostumamos a viver. Boa leitura!
Vem
o rei pelo caminho. Coberto de ouros, claro. Manto, coroa, cetro. Vê-se-lhe pouco
mais que os olhos.
-
Cansados.
-
É da viagem.
Avança
lento entre os populares. Histriônicos adoradores gritam-lhe elogios:
-
Fantástico! Absoluto!
Atrasado,
um parente tenta alcançá-lo. Corre. Ziguezagueia. Dribla um e outro. Há muita
gente no caminho. O monarca sempre um passo à frente. Estende o braço. Toca-lhe
o manto. Perde-o. Espreme-se entre o populacho. Faz cara de asco. Estica-se um
pouco mais. Alcança-lhe novamente as vestes. Puxa-as entre os dedos. Chama-o:
-
Senhor, Senhor!
O
rei faz cara de mouco.
Muito
cansado, atordoado, já em desespero, o pobre parente olvida o protocolo e berra
com despudorada intimidade, a roupa do soberano agora em suas mãos:
-
Coronel! Estou aqui. Olhe para mim!
O
povo pára. Entreolha-se. Alguém aponta:
-
O rei está nu!!!
A
multidão galhofa. Puro escárnio:
-
Como é pequeno!
O
séquito corre a remendar:
-
Esplêndido!
-
O rei é ainda mais belo nu!!!
-
Lindo! Lindo! Ovaciona-se do mundaréu.
A
essa altura já não se vê sua majestade. A corte formara imenso muro contra o
povo. Apenas vozes. Elogios:
-
Maravilhoso! Divino!
O
monarca até pensa em cobrir as partes, diminuído. Mas há muito com o que ocupar
as mãos. O poder é grande e pesa. E pensando bem, a transgressão o diverte.
Lembra-lhe os velhos tempos. Segue então peladão, todo prosa.
Lá
do céu, um tanto enciumado, entre bolachas de goma e a velha escarradeira, Deus
condena do colega a soberba:
-
Curva-te, pagão. Beija minha mão.
E
lança um raio de cem mil watts sobre o ventre do coitado.
O
homem enverga. Desmedida é a dor. Só que é de lei. Torar que é bom, nada. O
nariz só aponta para o norte, tem jeito não.
Alguém
nota-lhe o sofrimento:
-
O rei está doente!
De
pronto, a ladainha:
-
Pai nosso que estás no céu, santificado seja o Vosso nome, proteja nosso Senhor
da dor, da morte, da desgraça...
Ouvindo
aquilo, Deus se enfurece. Quem esse reizinho pensa que é? Esnobe. Impudico. Infiel.
E tome-lhe praga. Vamos ver se quem dobra não quebra?
-
Pecador, eu te condeno. Venha a mim. Precisamos conversar.
O
rei nu, coronel de exército nenhum, vê-se então explodir em chagas. Imundo, borbulhante,
purulento.
Uma
criança que se embrenhara entre as gigantescas pernas da nobreza, exclama:
-
Eca!!! O rei está podre. Que nojo! Vai morrer!
-
Ai, meu Deus, grita a beata, nosso rei vai morrer? Valha-me nosso Senhor Jesus
Cristo. Amém!!
Ao
ouvir a blasfêmia, o parente que o desnudara enraivece-se:
-
Ô gente burra! Odeio esse povo! Não diga “amém”, sua jumenta! Latim em boca de
pobre, pérola em chiqueiro...
-
Cala a boca, excomungado!
-
A culpa é toda sua, Judas! O rei era magnífico enquanto vestido.
-
Não bastasse o cancro no bucho, agora isso de apodrecer. É a ira do Pai. Só
pode ser.
-
Não pragueja, herege! Se foi o próprio Deus quem nos deu sua majestade...
-
A natureza não tem escrúpulos morais, pessoal...
-
Ateu, desgraçado!
-
Nosso rei vai morrer! Nosso rei vai morrer!
E
dá-lhe reza:
-
Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, salva nosso Pai da dor, da
morte, da desgraça...
Sonhando-se
imortal, mas conhecendo bem o rio que corre entre o sono e o sonho, o absoluto,
ainda curvado pela estúpida dor, olha-se enfim. Vê-se tomado de lepra. Os pés
caminhando sobre o charco de sua própria imundície. Absurdo. Pavoroso. Carniça ambulante.
O
menininho que lhe notara o horror, agora chora, levando consigo uma legião de
inconsoláveis devotos a sofrer-lhe antecipadamente a perda.
E
a beataria segura na reza:
-
Creio em Deus-Pai, Todo Poderoso, criador do céu e da terra, defende nosso Salvador
da dor, da morte, da desgraça...
Da
multidão, uma voz proverbial:
-
Vai-se o homem, fica o mártir!
Ah,
não. O rei acha aquilo demais. Mártir?! Pera lá. Isso de morrer não está em
seus planos!
Ele,
que passara a infância de missa em missa, padre em padre, bem sabe que Deus
gosta é de elogio (bom entendedor que é dos assuntos da vaidade). Dá então os
dedos para ver salvo os anéis. Lança-se de joelhos no asfalto quente, ergue as
mãos altíssimas aos céus, cerra os olhos para fingir-se embargado e grita...
Não, não grita. Não lhe cairia bem. Apenas fala. Baixo. Bem baixinho mesmo.
Cochicha aos ouvidos do Patrão:
-
Piedade, Senhor. Piedade!
E
cai. Já sem vida (Deus não estava mesmo para brincadeira!). Asfalto quente. Povão.
Reza. E mais reza.
A
jagunçada corre sobre o cadáver. Saca-o rapidamente de lá.
Alguém
pensa em perguntar se o rei morrera. Teme. Desiste. Era audível o rosnar dos
cães.
A
multidão se dispersa. Tudo volta ao normal.
Dias
depois, a notícia:
-
O rei está morto!
(Mas
morreu em leito de ouro, não custa lembrar).
Inaê Magno.
Brasília, 28 de março de 2013.